
Manderlay
Naquele domingo frio e chuvoso, de eleição, depois de cumprir meu dever cívico, passei na locadora. Peguei “Dogville” para rever e “Manderlay” para ver na seqüência. Não tinha conseguido tempo para ver “Manderlay” quando estava em cartaz, e nada melhor do que um domingo chuvoso para ser hipnotizada por Lars Von Trier.
Grace é a América. Ela tem um discurso bonito e uma ideologia, apaixonada (e poder, que é o que faz a diferença). Mas no fundo, a ideologia é apenas um discurso. Discurso no qual ela é perfeita. Grace é, na realidade, a grande opressora daqueles que estavam bem, ao seu modo, antes de ela interferir para ‘libertá-los da opressão’.
Aí você percebe a visão de Lars Von Trier, que não é muito diferente da minha, nem talvez da sua própria, ou da de muita gente que você conhece. A visão de fora daquela “América” auto-indulgente e prepotente, que força sua presença aonde não é bem vinda. E aí eu me refiro ao Iraque, e a sua triste transição para uma “Democracia”, e lembro de uma discussão que tive com um amigo americano que tinha aquela mente preconceituosa disfarçada de libertária, e ele me dizia ‘graças a nós o pobre povo do Iraque está livre daquele ditador, e eles estão bem melhor assim’, como se simplesmente trocar de opressor não causasse nenhuma seqüela (até porque o caos, do ponto de vista dele, está ‘sob controle’). A discussão foi se prolongando, e, quando chegamos aos países do terceiro mundo, a fome, a desigualdade, quando comecei a falar dos imigrantes nos EUA e como eles trabalham e vivem feito escravos para alimentar as diferenças sociais de lá e ser sempre marginalizados, ouvi uma resposta assim: “Nós dos Estados Unidos não tempos culpa da pobreza do mundo. Somos ricos por nosso próprio mérito e você não pode achar que o mundo seria mais justo se nos sustentássemos todos os países pobres.”
Vejam bem, esse meu amigo é um estudante de Direito, e não é rico. Mora em um estado agrícola e sempre levantou cedo para ordenhar vacas em uma propriedade bem pequena, que sustenta sua família. Ainda assim ele tem consciência de sua condição privilegiada. Apenas julga os fatos de um ponto de vista muito pessoal, e não faz questão de ampliar a dimensão do que consegue ver (como todo bom americano patriota).
Então, Lars Von Trier faz uma trilogia sobre a “América” e coloca os Estados Unidos em perspectiva, sem sair do território americano (fictício, de uma maneira sempre visualmente sublime), e das
personas americanas típicas.
A Grace de Manderlay, visivelmente mais madura do que aquela que viveu em Dogville, acredita muito que é a libertação daquela minoria oprimida. Mas ela é a opressão. As pessoas, classificadas em categorias, e vivendo segundo uma ‘lei’ outorgada, unilateral, que beira o bizarro, são as grandes vítimas sob os olhos dela. E também nas mãos dela. Simplesmente trocar de opressor não resolve o problema de uma minoria. Como o próprio Von Trier diz, “as pessoas devem ter o direito de acreditarem naquilo que escolhem acreditar”.
Se não viu, veja. Vale a pena.
[Convido a reler também: "A Terra em Miniatura"]
O
site oficial do filme tem entrevistas gravadas com os atores e com o próprio diretor.
Trailer:
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