segunda-feira, novembro 20

O Elogio da Aporrinhação


Hoje eu acordei com alguem ao telefone e dizendo é a fulana atendi ainda meio dormindo e pensando comigo se devia tentar disfarçar a voz ainda rouca já que afinal eram nove e meia da manhã ou seja a pessoa que estava ligando não estava ferindo nenhuma regra básica de etiqueta no entanto não consegui disfarçar e minha voz denunciava que eu havia dormido pouco como sempre afinal quando durmo é sempre muito tarde e dificilmente minha voz não está rouca às nove e meia da manhã ela falou falou e falou a princípio era apenas para me dar um recado mas a conversa foi se alongando e eu confesso que não entendi bem a razão de ela estar me contando tantas coisas e fiquei ouvindo mas tinha vontade de carregar o telefone para dentro do banheiro e lavar o rosto enquanto ela falava do outro lado da linha afinal de contas como imaginei a história toda que estava sendo contada não me interessava mas o mais irônico era que eu apesar de ainda estar sonolenta não queria ser indelicada e ficava ouvindo e respondendo com pequenas interjeições mas no fundo esperando que ela finalmente chegasse ao fim da história e desligasse para que eu pudesse me levantar tomar um banho e me trocar e eu também tinha coisas a fazer tinha agendado pequenas coisas que se não fizesse meu dia iria ficar todo complicado e quando uma segunda feira não é organizada muitas vezes o resto da semana fica se arrastando na improdutividade ela falava e falava e de vez em quando dizia preciso desligar agora porque tenho um dia cheio pela frente ainda preciso fazer mil coisas e eu pensava que bom ela vai desligar e eu dizia tudo bem a gente conversa outra hora mas ela continuava na história com novos detalhes que acabara de lembrar e novos planos para agir em nome do que estava sentindo e não desligava e não desligava e quando olhei para o relógio já eram dez e meia e ela estava falando havia uma hora inteira e a essa altura já me pedia favores que em estado normal acordada e de rosto lavado eu negaria mas como ainda estava confusa e não sabia bem se já tinha de fato acordado eu dizia que sim que tudo bem que ela podia contar comigo ela dizia você topa eu dizia topo ela dizia topa mesmo e eu dizia sim eu topo e a essa altura algum arrependimento e uma sensação de que a estupidez matinal já começava a me trazer prejuízos tomavam forma nas minhas sensações quando ela finalmente desligou me deixando comprometida até o pescoço com algo que certamente eu não farei e que terei trabalho para explicar minhas razões para não fazê-lo especialmente porque aceitei fazê-lo com tanta presteza no primeiro momento e eu mal teclei o botão off do aparelho quando ele voltou a tocar e por um reflexo mais estúpido do que tudo o que antecedera esse momento atendi e era outra pessoa igualmente falante me contando histórias e me fazendo perguntas que eu não queria responder e eu novamente me enrolei toda mas já estava fora da cama e ao menos ligava o computador à minha frente porque pensei se não vou conseguir lavar o rosto nem tomar um banho enquanto as pessoas falam comigo do outro lado da linha pelo menos vou checar meus e-mails até porque não estou interessada na conversa e com certeza ela não vai terminar com algum lucro para mim mas ela desligou logo falou apenas por trinta minutos e já eram onze horas quando finalmente liguei o chuveiro e pensei agora vou tentar me desligar me abster dessas coisas todas que ouvi para poder ir almoçar e finalmente começar meu próprio dia ainda que depois do almoço feito uma boêmia não se importe com a falta de pontuação desta narrativa é que é exatamente assim que minha cabeça estava no momento em que saí do chuveiro.



Lucca Kosta



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